- Eu gosto muito do meu avô Maneli, diz ela, numa bela pronuncia alentejana. O meu avô sabe muitas coisas.
- Que coisas, Madalena?
- Sabe muitas histórias.
(ai o avô babado, ai, ai...)
Confirma-se. O nosso homem pequenino cá de casa descobriu a Lagarta Flora e põe-na a tocar sozinho, ao mesmo tempo que, sentado nobumbo, vai abanando os ombros a marcar o ritmo. Todo satisfeito consigo próprio, brinda-nos com belos e orgulhosos sorrisos, arriscando-se a terríveis ataques de beijinhos.
Pedrinho não quer a papa e chora furiosamente, ameaçando lançar-se do bumbo abaixo (já o fez uma vez, portanto agora andamos sempre de olho nele). Mada acabou de acordar, está de mau humor e também não quer a papa. A mãe está a preparar-se para entrar no duche (finalmente) e não pode ir fazer de bombeiro. O pai, só com duas mãos, também não se safa. Solução: Ruca. Liga-se a televisão, coloca-se o filme e os dois anjinhos estão de volta, ela enroladinha no sofá, ele na sua cadeirinha, muito sério, a papar o episódio do princípio ao fim (com esta idade, dona Madalena só se concentrava mesmo nos anúncios da televisão). O papá aproveita e vê também. É pouco pedagógico? Se calhar é, mas pronto, há momentos em que é preciso recorrer aos grande métodos.
Cá em casa já só se usam fraldas tamanho 4. Dão para a mana e dão para o mano. Ela elegante e magricelas. Ele lindo e gorducho. 



A mamã que coma e é se quiser, que ele a bem dizer não lhe apetece, obrigado. Eu é mais maminha, responde, todo sorridente, como se pudesse mesmo falar e depois de me ter boicotado toda e qualquer tentativa de lhe enfiar uma colher de sopa pela goela abaixo. É que não entra nada. Cerra os lábios com toda a força, como fazia com o antibiótico da bronquite, mas a diferença é que eu desta vez não posso insistir, para não correr o risco de ele ganhar aversão à coisa. É desesperante. Mas normal, assegura a médica, que insiste em que eu é que já não me lembro, mas a Madalena há-de ter feito o mesmo. Se calhar fez, mas desta vez estou um bocadinho mais ansiosa, porque se aproxima a grande velocidade o dia do regresso ao trabalho, em que o rapaz deixará de ter as maminhas da mãe à disposição à hora a que bem lhe apeteça.
Grande. Foi o que me disse quando chegou a casa, cheia de sono, mas demasiado excitada para ir directamente para a cama. Foi o último dia de férias e foi, também, o dia do seu primeiro jogo de futebol na Luz. Foi à má-fila, porque só deixam entrar crianças com mais de três anos - o pai mentiu descaradamente ao segurança - e aguentou-se uma hora e meia sem reclamar. Voltou muito vaidosa, de cachecol do Quenquica, e a anunciar que tinha comido um pacote de batatas fritas, que tinha visto a águia vitória e que os senhores gritavam muito. Foi o primeiro jogo da temporada e, diz o pai, um Benfica-Académica, tal como o avô António teria gostado. Não ganhámos, mas não faz mal. O que ficará na memória de princesa há-de ser o estádio grande, grande, visto da sua perspectiva de menina de dois anos.
Fomos as duas ao cabeleireiro. Ficou de pé na cadeira, para chegar ao espelho, e seguiu atentamente cada corte da tesoura. Muito direita, sem um queixume, com vários sorrisos para a sua própria imagem. E nem reclamou no final, quando a cabeleireira insistiu em lhe secar a franja com o secador, ela que sempre detestou tal coisa. Linda, mamã, linda, disse-me quando saímos. E estava realmente linda. Como sempre, claro.
O que eu não percebo é de onde lhe vem este amor pela irritante boneca japonesa, já que cá em casa os vestígios da Kitty se resumem a uma camisola que lhe deram nos anos (obrigada Carla!) que ama de paixão e que já tem provocado sérias birras matinais quando está para lavar e ela decide que a quer vestir. Ah, e temos também uma mala (obrigada Carla, mais uma vez), mas essa anda desaparecida em combate, suspeito que debaixo de algum móvel.
O Pedro está a descobrir que tem mãos e que lhe pode dar vários usos. Dois, mais exactamente: enfiá-las todas na boca ou agarrar com elas o brinquedo que estiver à mão e metê-lo todo na boca. Também já consegue colocar a chucha sozinho, se bem que me parece que na maior parte das vezes a coisa ainda vai lá por acidente, depois de várias passagens pelo nariz, olhos e queixo. Fica que tempos nisto, entretido com ele próprio e em grandes conversações também com os seus botões. Quando olha para mim, o tom de voz sobe ligeiramente e só se cala quando lhe dou atenção. Nessa altura presenteia-me com um daqueles seus olhares apaixonados a transbordar de amor e largo imediatamente o que estou a fazer, seja lá o que for, para o atacar com uma sessão de beijinhos. Às vezes ainda me custa a acreditar que o tenho aqui e que fui abençoada com este privilégio tão grande que é ser mãe deste bebé.
Adora cantar os parabéns e de vez em quando oiço-a, baixinho, muito afinadinha, a cantarolar "pra menina Manena, uma salva de palmas", enquanto brinca com as bonecas. Desta vez as velas e as palmas foram para o Rui, que ganhou um bolo de chocolate.
Prenda para o Pedro: a caderneta de cromos do Mundial deste ano, o mesmo ano em que ele nasceu. Entretanto, o pai e a mãe divertem-se a comprar as carteirinhas e a colar os ditos, com a colaboração da mana Madalena, que ajuda a colar no sítio e ainda passa o dedinho por cima para se certificar que ficam bem coladinhos. Se alguém tiver para a troca, faça o favor de dizer que nós já temos um molhinho de repetidos.
O Benfica - ou mais exactamente Oscar Taquara Cardozo - marca o segundo golo, eu olho para o lado, e onde é que está o meu homem? Pois bem, está agarradinho ao vizinho da esquerda, o senhor gordo, de bigode e olhar bovino que o acompanhou durante os jogos ao longo do campeonato. Estão os dois emocionados e estou capaz de apostar que, olhando bem, há uma ou outra lagriminha ali a escorrer. Afinal, o Benfica está a doze minutos de ser campeão e a partir dali é preciso um azar do tamanho do mundo para a festa não se fazer na Luz. Decido que o melhor é fingir que não acabei pura e simplesmente de ser ignorada e junto-me aos 64 mil e não sei quantos malucos que enchem o estádio e berram a plenos pulmões: Campeões, campeões, já somos campeões.