Condomínio
E fazem
sexo, menina. Horas seguidas, nem faz ideia o barulho que aquilo é, mesmo aqui
por cima do meu quarto. Abana o candeeiro, abrem-se-me rachas na parece, tenho
a minha casa a cair e eles todas as noites naquilo, sempre a fazerem relações
sexuais. É gente sem princípios, que não sabe viver numa casa, que não respeita
ninguém. Já a encontrei nas escadas, já lhe pedi com toda a educação que faça
menos barulho, mas são piores que os gatos. A minha cabeça não aguenta. Até
tenho uma certidão da minha médica, a dizer que não pode ser, que preciso de
descansar, que tenho a tensão alta, que não posso comer coisas com sal, e
esfreguei-lha na cara, mas nada. Nada resulta. Nem a polícia. Sim, porque já
por mais de uma vez chamei a PSP, e o senhor agente até foi muito simpático e
muito compreensivo, mas eles pouco ligaram, na noite seguinte já lá estavam, na
mesma. E eu já não sei o que hei-de fazer. Fui ao tribunal, fiz queixa, levei
fotografias das rachas na parede e do candeeiro a cair, mas também me dizem que
não podem fazer nada, que a única hipótese era enfiar uma toalha na boca da
mulher, a ver se abafava o barulho, mas que cada um faz o que quer na sua casa.
E eu, nos meus 70 anos, com a carta da médica na mão, fiquei a olhar para o
juiz, que deve ser outro igual, que se calhar também só pensa em sexo e os
vizinhos não têm coragem de lhe dizer nada só porque ele é da autoridade. Não
sei o que hei-de fazer mais, que eu vivo sózinha, nunca tive marido, toda a
vida fui uma mulher respeitada, e agora isto. Ai, menina, que é que eu faço à
minha vida?
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Burocracias
Voltámos a
encontrar-nos no Notário. Ele tinha ligado duas ou três vezes, para saber da
Mariana, que apanhou varicela, mas atendeu a empregada. E quando foi preciso
acertar alguma coisa da venda da casa usámos o email e as providenciais SMS,
que me livraram de ter de lhe ouvir a voz e correr o risco de me desfazer em
pedaços.
Por isso
só nos voltámos a ver no Notário. Com um silêncio mais pesado do que a
burocracia que enche as paredes do edificio. Um silêncio tão grande que toda a
gente deve ter dado por ele, das empregadas loiras acetinadas aos desgraçados
que estavam na fila há horas e horas só para reconhecer uma assinatura. Perdi a
conta às vezes que li sem ler as palavras alinhadas no BI que tinha na mão,
suponho que ele fez o mesmo, porque lhe evitei os olhos. Fixei-me apenas nas
mãos onde ainda se nota a lista branca da aliança no moreno dos dedos.
Assinámos sem ver. De cruz. O gerente do banco ficou com o cheque. Eu fiquei
com a cópia da escritura de venda. O princípio do fim, porque ainda há-de vir o
resto, a outra folha de papel, onde um outro funcionário público há-de escrever
que já não somos casados, que não estaremos juntos para o melhor e para o pior
até que a morte nos separe. Palavras escritas que não serão precisas, porque
isso já nós o sabemos.
Saímos do
Notário cada um no seu elevador e ainda o vi, de fugida, a descer as escadas do
metro. Lá fora estava a Primavera. Olhei para o chão e os olhos caíram-me nos
pés, nas minhas sandálias preferidas. As mesmas que usei há dois anos num outro
dia ensolarado, quando um outro funcionário público, monocórdico, disse pode
beijar a noiva e lá fora nos esperavam a família e os amigos com as mãos cheias
de arroz carolino.
Antes
achava que as coisas más só aconteciam nos dias cinzentos. Hoje foi o sol que
assisitiu a tudo.
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Casamentos:
o amor paira no ar...
Cena 1
A noiva
parece um suspiro no seu vestido de tule. O noivo sua por todos os lados,
enfiado no fato e gravata. Na primeira fila dos bancos da igreja, os pais e os
padrinhos, aperaltados à altura do acontecimento, trocam olhares de felicidade
e emoção. As mães vertem as lágrimas da praxe e os pais, a transpirar por todos
os poros, tal como o noivo, olham-se desconfiados, já imaginar como é que, no
futuro, vão competir um com o outro nos barbecus de domingo lá em casa. Nas
filas mais atrás, família, amigos, namorados e namoradas de amigos, amigas e
amigos sem namorados(as) contam os minutos a ver quando é que acabará aquela sauna
e desesperam, porque já são três da tarde e só depois da inevitável sessão de
fotografias é que poderão atacar o buffet. É Primavera e o amor paira no ar,
juntamente com os rebentos dos amigos e familiares que, vá-se lá saber porquê,
não páram de saltar e berrar, a insistir que estão fartos daquilo e querem ir
lá para fora comer gelados.
Cena 2
Flores por
todos os lados assinalam o percurso até à tenda onde o copo-de-água aguarda os
famintos convidados. O cisne de gelo já começou a derreter, mas a torre de
camarões continua com um aspecto convidativo, se bem que, com o calor, nunca se
sabe. À cautela, é melhor passar ao lado da maionese. Os convidados entram e
atacam, como se tivesse acabado de chegar a cavalaria. Antes têm de descobrir
em que mesa vão ficar, na lista que foi colada na parede, logo a seguir à torre
de camarões que entretanto já começou a ruir. Casados para um lado, solteiros
para outro. A noiva tratou de tudo ao milímetro, para que quem foi sozinho não
fique desemparelhado, e as amigas solteiras aguardam ansiosas, para ver quem
lhes calhou no lugar do lado. Afinal, o amor paira no ar, e nunca se sabe...
Cena 3
Já ninguém
aguenta os gritos dos 324 miúdos que correm pela sala. Dois deles já bateram
com a cabeça no chão e lá foi preciso recorrer ao gelo que ainda restava do
cisne. Um dos convidados bebeu demais e insiste em dizer ao noivo que o melhor
é pôr-se a milhas, que o casamento ainda não foi consumado e por isso pode
pedir a anulação ao Papa. A mulher dele tenta arrastá-lo para fora, mas ele
garante que se soubesse o que sabe hoje era isso mesmo que teria feito. Nas
mesas dos solteiros, a coisa não corre muito melhor. A Ana já se zangou com o
Paulo, que olhou o tempo todo para as pernas da Rita e a Júlia está toda
derretida com o Filipe, que, por sua vez, está a ver se arranja uma desculpa
suficientemente plausivel para se pirar dali, como dizer que a avó morreu ou
coisa do género. O Pedro, amigo do noivo, ficou ao lado da Joana, amiga da
noiva. Ela acha que a amiga se armou em casamenteira quando lhe escolheu o
lugar e está amuada e ele não consegue pensar em nada para dizer porque,
precisamente na mesa ao lado, está a sua ex-namorada, que veio acompanhada do
novo apêndice, um baixinho careca cheio de dinheiro. O amor paira no ar.
Cena 4
Hora do
bolo e do champanhe. Fazem-se brindes. As mães voltam a chorar. As tias também.
O noivo já bebeu tanto que sobe para cima da mesa e começa a tirar a roupa. A
noiva também chora, porque os sapatos novos lhe apertam os joanetes. O padrinho
consegue tirar o noivo de cima da mesa e convencê-lo a abrir o baile. A música,
tal como o amor, paira no ar. Os miudos, esses já estão no chão, a dormir pelos
cantos. O suplício termina lá para as três da manhã. O casamento foi lindo e
maravilhoso. No próximo fim de semana há outro. Parece que toda a gente insiste
em casar na Primavera? Ai, o amor, o amor... É lindo, pois claro. E quem é que
não sonha com um casamento de sonho?
(retirado
do baú - Out 2004)
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