quarta-feira, 16 de novembro de 2011

As fotografias de Dona Floripes

Havia muitas fotografias a deslizar no rio em que se tornou a nossa rua no fim de semana, mas ainda resgatámos algumas. Numa a Dona Floripes estava de fato de banho, na praia, com uma amiga. Noutra aparecia na Avenida da Liberdade, com um dos seus cães, numa Avenida da Liberdade de há muitos anos, ainda sem a multidão de carros que hoje tem e com as copas das árvores a meia haste, longe das alturas que agora atingem. Mas havia muitas outras, a maioria de animais, que sempre foram os melhores amigos da dona Floripes.
Além das fotos, havia livros. Romances de cordel, o livro da quarta classe, mais livros de escola, listas telefónicas. E roupas. E o crochet que nunca foi terminado, ainda com a agulha espetada no novelo de linha. E a velha poltrona.
As coisas que não escorriam no rio de água da rua estavam enfiadas no contentor que o novo dono do prédio requisitou para o lixo. Eram os restos da vida da Dona Floripes, que ainda não morreu, mas que foi despejada da casa onde viveu a vida toda, primeiro com a mãe e depois com pombos, gatos e cães, tantos que até ela lhes há-de ter perdido a conta.
Pensámos em lhe devolver as fotografias, mas depois desistimos da ideia. Dona Floripes, vive agora num rés-do-chão, o que lhe facilita a ida à rua, mas há-de sentir falta do seu 4º andar sem elevador com uma vista deslumbrante sobre a cidade e os seus amigos pombos que a visitavam todos os dias.
E também há-de sentir falta das suas coisas, que não pôde levar porque a casa agora é muito mais pequena.
Com oitenta anos, Dona Floripes já não precisa de saber que as suas fotografias andam a navegar pelo bairro. Há coisas em que somos muito mais felizes na ignorância.

4 comentários:

graça anibal disse...

Lindo, o texto. Filomena, junte uns textos destes e publique, se faz favor.

PS: Não foi a D. Floripes quem quis ficar com o Calvin? Agora fica sem as fotografias. Essas não podem fugir.

carlamariamateus40 disse...

Publica que vais ter mtos leitores!!!
Bjinho

JR disse...

Como é que tu sabes estas coisas todas sobre a nossa vizinha do lado e eu não?

mena disse...

graça e carla: obrigada. não sei se já vos disse, mas vocês são as minhas duas melhores leitoras :)

joana:isso é porque tu não tens um gato que passa a vida na rua a fazer amizade com toda a gente. graças a ele conhecemos quase o bairro todo :)