domingo, 22 de julho de 2012

Os barqueiros também têm cortes salariais

[Restos das férias em Cabanas. Porque a mamã não escreve sempre sobre coisas chatas]
A ria Formosa há muito que deixou de ter segredos para ele. Já a cruzou tantas vezes que se fosse preciso era capaz de o fazer de olhos fechados. Custódio Guerreiro, 68 anos, nasceu ali ao lado, em Cabanas de Tavira, e fez da ria a sua casa. Fez-se pescador, fez-se ao mar alto, foi trabalhar para Marrocos quando foi preciso ganhar mais dinheiro, mas foi sempre ali, na ria Formosa, que se sentiu em casa. Vai para oito anos que, nos meses de Verão transporta os turistas do aldeamento das Pedras da Rainha entre as duas margens. A viagem dura pouco mais de um minuto. Se for preciso, faz-se apenas em 47 segundos, o pequeno barco em alta velocidade, a rasgar o azul da ria. 

Apesar da beleza da paisagem, não se pense que é um trabalho fácil. A praia de Cabanas é um dos últimos tesouros do litoral algarvio, procurado todos os anos por muitos turistas. Cada vez mais, aliás, obrigando também a um crescente número de travessias, para transportar toda a gente para o areal do lado de lá e, depois, para trazer novamente os banhistas para a aldeia. O senhor Custódio trabalha apenas uma parte do ano, normalmente a partir de Abril ou Maio, às vezes antes, dependendo do calendário da Páscoa, que costuma ser o tiro de partida para o turismo algarvio. 

Este ano, o aldeamento das Pedras da Rainha, dono do pequeno barco, voltou a chamá-lo, para o seu habitual emprego de Verão, mas apresentou-lhe uma novidade: o salário ia ter de baixar, que os tempos são de crise e não se sabe como vai correr o Verão. Em vez dos mil euros que tinham pago nos últimos anos, desta vez o ordenado não poderia ir além dos 750 euros. Um corte de 25%, mas era pegar ou largar, que certamente muita gente haveria para contratar. E o velho mestre aceitou. 

Custódio Rodrigues é filho de pescador e dedicou toda a sua vida ao mar. Começou na faina aos 12 anos e aos 60 tratou da reforma, que já era tempo de se pôr em descanso. Contas feitas, trazia para casa pouco mais de 400 euros, mesmo assim, mais do que muitos dos seus colegas que nunca saíram da pesca artesanal e que vivem agora com pensões que andam pelos 300 e picos. O emprego sazonal nas Pedras da Rainha veio mesmo a calhar, até porque, sendo tudo legal e com os devidos descontos para a Segurança Social, a reforma tem vindo também a aumentar um bocadinho todos os anos. Assim sendo, nem pensar fazer finca-pé e recusar o corte salarial, que 750 euros sempre são muito melhor do que nada.

O dia de trabalho começa às oito da manhã e termina às sete da tarde, com uma hora de intervalo para o almoço. Às vezes, porque se reveza com outro colega, também antigo pescador, pega às nove e sai às oito. Num caso ou no outro, são dez horas de trabalho que se vêem na pele marcada pelo sol do velho pescador. E se o dinheiro dá jeito, trabalhar com os turistas também não é mau. "Não tenho nada a dizer deles", diz. "Tenho-me dado muito bem, no aldeamento gostam de mim, já os conheço há muito tempo, somos quase como família". 

Ao dia de folga, normalmente à sexta-feira, o mestre barqueiro, que agora vive ali a poucos quilómetros, em Tavira, pega na sua bicicleta e vem mais uma vez para Cabanas. Tem uma pequena barraca de madeira no extremo da marina, no mesmo sítio onde os pescadores guardam os barcos e o material para a faina, e aí passa o seu dia livre. "A matar saudades" dos velhos tempos. Às vezes ainda sai para o mar, no último barco que lhe restou, mas na maior parte das vezes fica por ali, a fazer redes de pesca, uma arte que aprendeu com o pai e que lhe rende mais algum dinheiro. O trabalho é minucioso, uma agulha de madeira a desenhar pequenos quadrados de corda onde os peixes ficarão presos. "São redes para besugos, na costa aqui à frente", explica. Por cada uma que faz cobra dez euros, fora o material, e a média são duas por dia. É um complemento, mais pelo prazer de estar entretido, ali mesmo, ao pé da ria. 

O senhor Custódio casou aos 18 anos, teve nove filhos, entre netos e bisnetos já conta mais 32 descendentes, mas até hoje nenhum lhe seguiu as pisadas. Tem um filho pedreiro, outro motorista de longo curso, outros ainda que trabalham no turismo, mas nenhum que quisesse ser pescador e, muito menos, aprender a fazer redes de pesca. "Os tempos são outros. E eu comecei aqui, com o meu pai, e foi a vida toda. E será até morrer."


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